O ESTUPRO DE VULNERÁVEL E A CONTEMPLAÇÃO LASCIVA
O CRIME DE ESTUPRO
O estupro cometido contra pessoa sem capacidade ou condições de consentir, com violência ficta, deixou de integrar o art. 213 do CP para configurar crime autônomo, previsto no art. 217-A, sob a nomenclatura “estupro de vulnerável”. Seu teor é o seguinte: “Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. § 1º Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência. § 2º (Vetado.) § 3º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave: Pena – reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos. § 4º Se da conduta resulta morte: Pena – reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos”.
Dessa forma, as condições acima aludidas passaram a integrar o tipo penal do art. 217-A, com sanções próprias, distintas das reprimendas impostas ao crime sexual praticado com violência real. Antes, o operador do direito necessitava lançar mão da ficção legal contida no art. 224 do CP para lograr enquadrar o agente nas penas do art. 213 ou do revogado art. 214 do CP. Agora, a subsunção típica do fato será direta no 217-A do CP.
Mencione-se que a criação do art. 217-A do CP foi acompanhada, de outro lado, pela revogação expressa do art. 224 do CP pela Lei n. 12.015/2009, mas, como veremos mais adiante, de uma forma ou de outra, todas as condições nele contempladas passaram a integrar o atual dispositivo legal, que não mais se refere à presunção de violência, mas às condições de vulnerabilidade da vítima, daí a rubrica “estupro de vulnerável”.
Há, contudo, que se fazer uma distinção. Vulnerável é qualquer pessoa em situação de fragilidade ou perigo. A lei não se refere aqui à capacidade para consentir ou à maturidade sexual da vítima, mas ao fato de se encontrar em situação de maior fraqueza moral, social, cultural, fisiológica, biológica etc. Uma jovem menor, sexualmente experimentada e envolvida em prostituição, pode atingir à custa desse prematuro envolvimento um amadurecimento precoce. Não se pode afirmar que seja incapaz de compreender o que faz. No entanto, é considerada vulnerável, dada a sua condição de menor sujeita à exploração sexual.
Por esse motivo, não se confundem a vulnerabilidade e a presunção de violência da legislação anterior. São vulneráveis os menores de 18 anos, mesmo que tenham maturidade prematura. Não se trata de presumir incapacidade e violência. A vulnerabilidade é um conceito novo muito mais abrangente, que leva em conta a necessidade de proteção do Estado em relação a certas pessoas ou situações. Incluem-se no rol de vulnerabilidade casos de doença mental, embriaguez, hipnose, enfermidade, idade avançada, pouca ou nenhuma mobilidade de membros, perda momentânea de consciência, deficiência intelectual, má formação cultural, miserabilidade social, sujeição a situação de guarda, tutela ou curatela, temor reverencial, enfim, qualquer caso de evidente fragilidade.
QUEM É O VULNERÁVEL?
É o indivíduo menor de 14 anos ou aquele que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.
Tanto o homem quanto a mulher podem ser sujeitos passivos do crime em exame.
Vejamos, agora, cada uma das circunstâncias legais previstas no art. 217-A do CP, de onde se depreende a vulnerabilidade da vítima:
- a) Vítima com idade inferior a 14 anos. O menor de idade, pela imaturidade, não pode validamente consentir na prática dos atos sexuais. Verifique-se que o legislador incorreu em grave equívoco, na medida em que, se o crime for praticado contra a vítima no dia do seu 14º aniversário, não haverá o delito do art. 217-A nem a qualificadora do art. 213 do CP. Poder-se-á configurar, no caso, o estupro na forma simples, havendo o emprego de violência ou grave ameaça. Se houver o consentimento do ofendido, o fato será atípico, sendo a lei, nesse ponto, benéfica para o agente, devendo retroagir para alcançá-lo.
Vale notar que a tendência na doutrina era emprestar valor relativo a essa presunção (juris tantum), corrente essa minoritariamente partilhada pela jurisprudência. Assim, afastava-se essa presunção nas seguintes hipóteses: vítima que aparentava ser maior de idade; que era experiente na prática sexual; que já se demonstrava corrompida; vítima que forçou o agente a possuí-la; que se mostrava despudorada, devassa. Para essa corrente, a presunção não poderia ser absoluta, sob pena de adoção indevida da responsabilidade objetiva. O dispositivo em questão teria como intuito proteger o menor sem qualquer capacidade de discernimento e com incipiente desenvolvimento orgânico. Se a vítima, a despeito de não ter completado ainda 14 anos, apresentasse evolução biológica precoce, bem como maturidade emocional, não haveria por que impedir a análise do caso concreto de acordo com suas peculiaridades. Por exemplo: rapaz de 18 anos, que namorasse uma menina de 12 anos há pelo menos um ano, e com ela mantivesse conjunção carnal consentida. Se a garota tivesse um desenvolvimento bem mais adiantado do que sugerisse sua idade, e se ficasse demonstrado seu alto nível de discernimento, incomum para sua fase de vida, para essa corrente não haveria por que considerar o autor responsável por estupro, já que a presunção teria sido quebrada por circunstâncias específicas do caso. Entretanto, os Tribunais Superiores vinham adotando entendimento no sentido de que a presunção de violência seria absoluta quando o crime fosse praticado contra vítima menor de idade (juris et de jure). Assim, sustentava-se que o consentimento de menor de 14 anos para a prática de relações sexuais e sua experiência anterior não afastariam a presunção de violência para a caracterização do estupro ou do atentado violento ao pudor; da mesma forma, o comprovado concubinato do réu com a vítima menor de 14 anos não teria o condão de elidir a presunção de violência.
Note-se que, se houvesse erro de tipo, não haveria a configuração típica, uma vez que nesta o agente desconhece a idade da vítima, ignorando, assim, a existência da elementar típica. Por exemplo: sujeito inexperiente vai a uma casa noturna, na qual só podem entrar maiores de 18 anos; lá conhece uma prostituta muito bem desenvolvida fisicamente, combina um “programa” e com ela se dirige a um motel; após apresentarem seus respectivos documentos de identidade na portaria, chegam ao cômodo; tão logo se encerra o ato sexual (negocial), a polícia invade o quarto e prende o agente, uma vez que a moça tinha apenas 13 anos de idade. Duas alegações seriam possíveis: (a) a moça tem desenvolvimento físico e psicológico prematuro e já possui razoável experiência sexual, de modo que não haveria como o agente supor a menoridade; (b) o agente não sabia, nem tinha como saber, que mantinha conjunção carnal com uma menor, pois ela estava em um local onde só ingressariam maiores, apresentou documento falso e tinha físico de adulto. A segunda hipótese seria a do erro de tipo essencial, o qual excluiria o dolo e tornaria o fato atípico, diante da ausência de previsão legal. Não poderia incidir a agravante do art. 61, II, h (crime contra criança). A menoridade seria provada mediante certidão do registro civil.
Em recente decisão, de 26-8-2014, o Ministro Rogério Schietti, da 6ª Turma do STJ, reformou decisão absolutória de primeira e segunda instâncias que absolviam o agente acusado de estupro de vulnerável diante de peculiaridades do caso concreto. Para o Superior Tribunal de Justiça, a presunção de vulnerabilidade de menor de 14 anos é absoluta e não admite prova em contrário nem sequer pode ser relativizada.
- b) Vítima que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato. O art. 224, b, do CP fazia menção à vítima alienada ou débil mental e exigia que o agente devesse conhecer essa circunstância. O art. 217-A, § 1º, do CP abrangeu a referida hipótese, mas também incluiu a vítima enferma, que, na realidade, já era tutelada pelo art. 224, c, do CP. Deve-se provar, no caso concreto, que, em virtude de tais condições, ela não tem o necessário discernimento para a prática do ato. Cumpre, portanto, que sejam comprovadas mediante laudo pericial, sob pena de não restar atestada a materialidade do crime, por se tratar de elementar, a qual integra o fato típico. Vejam que, pela própria redação do tipo penal, não há como não se exigir uma análise concreta acerca da caracterização ou não da situação de vulnerabilidade da vítima.
- c) Vítima que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência. Trata-se de hipótese que já constava do art. 224, c, do CP. Por vezes, a vítima não é menor de idade nem tem enfermidade ou deficiência mental, mas, por motivos outros, está impossibilitada de oferecer resistência. Exemplos: embriaguez completa, narcotização etc. A presunção aqui também era relativa, e devia ser provada a completa impossibilidade de a vítima oferecer resistência. Cremos que, com as modificações legais, tal necessidade permanece, pois não há como não se exigir a comprovação no caso concreto de que a vítima não tenha condições de oferecer qualquer oposição.
A CONTEMPLAÇÃO LASCIVA CARACTERIZA O TIPO PENAL?
Para o Superior Tribunal de Justiça, sim!
Eis a decisão do STJ:
A conduta de contemplar lascivamente, sem contato físico, mediante pagamento, menor de 14 anos desnuda em motel pode permitir a deflagração da ação penal para a apuração do delito de estupro de vulnerável. Segundo a posição majoritária na doutrina, a simples contemplação lasciva já configura o “ato libidinoso” descrito nos arts. 213 e 217-A do Código Penal, sendo irrelevante, para a consumação dos delitos, que haja contato físico entre ofensor e ofendido. (STJ. 5ª Turma. RHC 70.976-MS, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 2/8/2016 (Info 587).
Entende-se por contemplação lasciva o ato de, sem tocar na vítima, mesmo a distância, satisfazer a sua libido com a nudez alheia.
Quando essa contemplação lasciva é realizada junto com o ato de constranger a vítima, teremos o tipo penal contra dignidade sexual.
E se a vítima se enquadra no conceito legal de vulnerável, estarão preenchidas todas as elementares típicas do crime de estupro de vulnerável – art. 217-A.
Reza o tipo penal:
Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.
Por certo, a contemplação lasciva não se enquadra na expressão conjunção carnal, mas, de acordo com a maioria da doutrina e do STJ, pode ser caracterizada como ato libidinoso diverso da conjunção carnal e, nesse caso, não se exige contato físico entre ofensor e vítima pra fins de tipificação.
Realizada a adequação típica, o fato de o agressor não ter tocado na vítima não serve para isentá-lo de responsabilidade criminal, mas pode influenciar a dosimetria da pena, respeitando a proporcionalidade entre um infrator que tocou na vítima e o outro que apenas a contemplou lascivamente.
Fernando Capez é Procurador de Justiça licenciado, Deputado Estadual, e Presidente da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Mestre em Direito pela USP e Doutor pela PUC/SP. Professor Honorário da Universidade Presbiteriana Mackenzie, da Escola Superior do Ministério Público e de Cursos Preparatórios para Carreiras Jurídicas. Autor de obras jurídicas. É também Presidente do Colégio de Presidentes das Assembleias Legislativas do Brasil.