Identidade de gênero não é ideologia
A imprópria utilização do termo “ideologia de gênero” tem levado à politização de uma relevante questão de índole constitucional, devendo prevalecer a interpretação jurídica sobre a ideológica. A usurpação do tema como bandeira política, e às vezes até político-partidária, tem retirado a seriedade do debate e provocado distorções no enfoque constitucional de respeito a vida, liberdade e intimidade da pessoa humana.
Nesse contexto, a introdução da questão no ensino básico deve ser feita de modo profissional, com estudos prévios de especialistas de áreas interdisciplinares, menos no sentido de padronizar ou direcionar comportamentos, e mais no de estimular o convívio sadio e respeitoso, bem como a aceitação das diferenças individuais na sociedade.
Em decisão recente, o Supremo Tribunal Federal proclamou a inconstitucionalidade de lei municipal que vedava a divulgação de material com conteúdo de “ideologia de gênero” em escolas municipais. O caso ocorreu em Novo Gama (GO), com a edição da Lei Municipal nº 1.516/15, a qual proibia a utilização de material didático com referência a ideologia de gênero na rede de ensino. Assim diziam os primeiros dispositivos da referida lei:
“Artigo 1º — Fica proibida a divulgação de material com referência a ideologia de gênero nas escolas municipais de Novo Gama — GO.
Artigo 2º — Todos os materiais didáticos deverão ser analisados antes de serem distribuídos nas escolas municipais de Novo Gama — GO.
Artigo 3º — Não poderão fazer parte do material didático das escolas em Novo Gama — GO materiais que fazem menção ou influenciem ao aluno sobre a ideologia de gênero.
Artigo 4º — Materiais que foram recebidos mesmo que por doação com referência a ideologia de gênero deverão ser substituídos por materiais sem referência da mesma”.
Em primeiro lugar, a nomenclatura “ideologia de gênero” é tecnicamente incorreta. Conforme se verifica nos mais recentes estudos acerca da sexualidade humana, o gênero não compõe uma ideologia da pessoa, mas sua identidade, ou seja, o modo como a pessoa se vê e gostaria de ser vista pela sociedade. Quando falamos de identidade de gênero estamos diante da interação entre o sexo biológico do indivíduo e sua autoidentificação mental.
A depender da interação entre o sexo biológico e a identificação psicológica do indivíduo, estaremos diante de uma gama de possibilidades de identidades de gênero, como bem conceitua a Organização das Nações Unidas:
“A identidade de gênero se refere à experiência de uma pessoa com o seu próprio gênero. Pessoas transgênero possuem uma identidade de gênero que é diferente do sexo que lhes foi designado no momento do seu nascimento. Uma pessoa transgênero ou trans pode identificar-se como homem, mulher, trans-homem, trans-mulher, como pessoa não binária ou com outros termos (…)” [1].
Depois de ajuizada ADPF para verificação de sua constitucionalidade, entendeu a Corte Constitucional que a lei municipal apresentava inconstitucionalidade nos aspectos formais e materiais. Há inconstitucionalidade formal em função da CF, artigo 22, XXIV e seu parágrafo, segundo os quais os municípios não possuem competência para legislar sobre conteúdo programático e assuntos pedagógicos.
“Artigo 22 — Compete privativamente à União legislar sobre:
XXIV — diretrizes e bases da educação nacional;
Parágrafo Único. Lei complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas das matérias relacionadas neste artigo”.
De igual forma, a CF, artigos 24, IX, e 30, II, determinou a prevalência de União, estados e Distrito Federal quanto à competência para estabelecer normas sobre educação e ensino, conferindo competência suplementar residual para os municípios no que lhe couber.
“Artigo 24 — Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
IX — educação, cultura, ensino, desporto, ciência, tecnologia, pesquisa, desenvolvimento e inovação.
Artigo 30 — Compete aos municípios:
II — suplementar a legislação federal e estadual no que lhe couber”.
Foi precisamente no exercício de sua competência constitucional, que a União editou a Lei nº 9.394/96 — Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), a qual não trouxe nenhuma vedação acerca da divulgação e utilização de material com conteúdo de ideologia (identidade) de gênero em escolas públicas. A Lei Municipal n° 1.516/15, portanto, ao proibir a utilização e divulgação do material, exorbitou de sua competência suplementar e estabeleceu novos parâmetros de utilização de material didático, caracterizando interferência inconstitucional no conteúdo programático das escolas do Sistema Nacional de Educação (CF, artigo 214 c/c. Lei nº 13.005/14) e inobservância da Lei de Diretrizes e Bases.
Por se tratar de matéria que afeta toda a rede de ensino, não poderia a Constituição Federal permitir que cada município legislasse à sua maneira, vedando ou autorizando determinado conteúdo programático. Se assim o fosse, estaríamos diante de uma distorção do caráter universalizante do ensino, fazendo com que alunos de alguma região do país ficassem alijados do conhecimento compartilhado com os demais.
A competência legiferante suplementar conferida aos municípios pelo artigo 30, II, da CF, diz respeito a especificidades locais, adaptando o acesso do aluno às peculiaridades da região, quanto ao ensino e a difusão do conhecimento. Referido dispositivo constitucional não pode ser interpretado como licença para suprimir temas da matriz curricular federal, muito menos para autorizar legislativos municipais a proibir a veiculação de material que a União e os estados não vedaram.
“Desse modo, os municípios não dispõem de competência legislativa para a edição de normas que tratem de currículos, conteúdos programáticos, metodologias de ensino ou modos de exercício da atividade docente” [2].
Por seu turno, a inconstitucionalidade material se deu porque a lei municipal confrontou os dispositivos da CF, artigo 206, II e II, referentes à liberdade na relação de ensino/aprendizagem e no pluralismo de ideias que devem nortear os assuntos educacionais.
“Artigo 206 — O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
II — liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber;
III — pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino”.
Proibir determinado conteúdo de ser ministrado em sala de aula caracteriza censura prévia imposta por um grupo menos numeroso de parlamentares no sentido de privar o acesso ao conhecimento e interferir na liberdade de cátedra dos professores.
Nos dias atuais. a identidade de gênero é reconhecida como elemento constitutivo da psique humana, sendo essencial para o desenvolvimento da personalidade e identidade dos indivíduos, e a mitigação do seu conteúdo em sala de aula rompe com o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (CF, artigo 1º, III) [3].
“O reconhecimento da identidade de gênero é, portanto, constitutivo da dignidade humana. O Estado, para garantir o gozo pleno dos direitos humanos, não pode vedar aos estudantes o acesso a conhecimento a respeito de seus direitos de personalidade e identidade” [4].
Sob permanente supervisão de especialistas e acompanhamento da constante evolução dos estudos sobre Educação, Sociologia, Psicologia e comportamento humano, e abandonado tema como bandeira ideológica para tomada de poder político, com a seriedade e a responsabilidade que a questão demanda, a identidade de gênero nada mais é do que o reflexo de uma sociedade justa e igualitária, cujo pilar de sustentação reside na dignidade humana e no respeito à liberdade de autodeterminação de cada um.
[1] Nota Informativa da Organização das Nações Unidas.
[2] CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Principais julgados do STF e STJ Comentados, Editora JusPodium, 2021, p. 45.
[3] CF, artigo 1º – “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel de Estados e municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direitos e tem como fundamentos: III – a dignidade da pessoa humana”.
[4] STF, ADPF 457, voto do Min. Edson Fachin, julgado em 27/04/2020.